sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A transformação dos insetos.

Um mosquito transgênico e outro irradiado são as novas armas contra a dengue
Reduzir a população do mosquito transmissor da dengue, única forma atualmente disponível para controlar a doença, é o objetivo de dois projetos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros, um em Piracicaba, no interior de São Paulo, e outro em Juazeiro, na Bahia. A meta de ambos é a mesma: produzir em laboratório, em larga escala, machos da espécie Aedes aegypti – que transmite o vírus causador da dengue – incapazes de gerar filhotes saudáveis e depois soltá-los no ambiente para competir pelas fêmeas com os congêneres selvagens. Mas as estratégias para atingir esse fim são diferentes. Enquanto em São Paulo os insetos são bombardeados com radiação gama para torná-los estéreis, na Bahia optou-se pela transgenia (ver Pesquisa FAPESP nº 180). Eles recebem um gene modificado que produz uma proteína fatal para a prole resultante do cruzamento com as fêmeas normais existentes no ambiente. A ideia por trás dessas estratégias é liberar em massa os mosquitos transgênicos e irradiados, ambos incapazes de procriar em áreas infestadas pelo Aedes aegypti.
A dengue é um dos principais problemas mundiais de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), todos os anos 50 milhões de pessoas contraem a doença, das quais 550 mil são internadas nos hospitais e 20 mil morrem. A liberação contínua e em número suficiente desses insetos inférteis deve ajudar a amenizar o problema, reduzindo a população nativa do Aedes a um nível abaixo do necessário para a transmissão da doença. Em maior número, eles terão vantagens competitivas com os machos selvagens férteis, que terão menos chances se acasalar e gerar filhotes. Não há risco ao soltá-los no ambiente, porque somente as fêmeas transmitem o vírus da dengue.
O mais recente dos dois projetos é resultado de uma parceria entre o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), de Piracicaba, e a empresa Bioagri, um grupo privado de laboratórios de análises. O professor Valter Arthur, do Departamento de Radiobiologia e Ambiente do Cena, conta que a ideia do trabalho surgiu há pouco mais de quatro meses, durante uma conversa com Márcio Adriani Gava, diretor técnico da Bioagri. “Ele me procurou porque queria fazer um curso de doutorado sob minha orientação”, diz. “Como eu sabia que no laboratório da Bioagri estavam criando mosquitos para teste de eficiência de inseticidas e nós aqui trabalhamos com irradiação de insetos há mais de 30 anos, propus a parceria.”
A intenção foi aproveitar a experiência e as instalações da unidade da Bioagri, no município de Charqueada, a 20 quilômetros de Piracicaba, para a criação de mosquitos, e os conhecimentos e equipamentos do Cena. “Há 15 anos criamos insetos, que são utilizados por fabricantes de inseticidas e larvicidas para testar a eficácia de seus produtos”, conta Gava. “Além do Aedes aegypti, mantemos criação do Culex quinquefaciatus e do Anopheles aquasalis.” Na fábrica de Charqueada são produzidos em média 3 mil indivíduos de cada espécie por mês.
O Cena, por sua vez, desde 1968 possui irradiadores de raios gama. A máquina utilizada é cilíndrica, com pouco mais de 2 metros de altura e cerca de 80 centímetros de diâmetro, toda revestida de chumbo. No interior dela há pastilhas de cobalto-60, que emitem os raios gama dentro de uma câmara também interna de 17 por 13 centímetros, onde são instaladas as amostras, como mosquitos, frutas ou sementes. No Cena, o equipamento é usado para esterilizar insetos e em pesquisas nas áreas de conservação e desinfecção de alimentos, tratamento quarentenário de pragas de produtos agrícolas e de sementes para aumento de produção.
O processo que leva ao Aedes estéril começa na Bioagri. Em seus criatórios, populações do mosquito são mantidas em gaiolas para acasalamento e postura dos ovos. Para isso há pequenos recipientes com água e um papel na borda, onde acontece a postura. Três vezes por semana os papéis com os ovos são retirados e colocados numa bandeja com água em outras gaiolas. Depois de três a quatro dias eles eclodem, transformando-se em larvas. Após mais oito dias, em média, as larvas se transformam em pupas, que são recolhidas e separadas conforme o sexo. Para isso, elas são colocadas num aparelho, formado por duas placas de acrílico, paralelas. Como as pupas das fêmeas são maiores, elas não passam pelo espaço entre as duas placas. As dos machos são recolhidas num recipiente com água, que depois é colocado no irradiador do Cena para que recebam a radiação.
Dose ideal
Segundo Arthur, o ideal seria irradiar os adultos, que já estão com o aparelho reprodutor e outros órgãos completamente formados para diminuir os efeitos da radiação. Mas seria muito difícil e complicado colocar 5 ou 10 mil insetos vivos num pequeno recipiente. Por isso, optou-se pelas pupas, que correspondem à fase mais próxima do animal adulto. “No início do projeto, o objetivo foi determinar a dose ideal de radiação”, diz Arthur. “Ela teria que ter uma quantidade de energia que não matasse os mosquitos, mas que provocasse mudanças em seu sistema biológico, tornando-os inférteis. Além disso, o macho estéril teria que manter as mesmas características dos que estão no ambiente, para poder disputar as fêmeas em condição de igualdade. Ele teria que copular com a fêmea e ela colocar ovos que não eclodissem.”
Para isso, os pesquisadores testaram doses de radiação de 10, 20, 30, 40, 100 e assim por diante até 150 grays (Gy). Gray é uma unidade do Sistema Internacional de Medida, que representa a quantidade de radiação absorvida (ou dose) por unidade de massa. No experimento no Cena, a cada dose foram utilizadas uma média de 300 a 500 pupas, que depois voltavam para as gaiolas para completar seu crescimento. Com a diferença de que deveriam gerar machos inférteis. “Constatamos que a quantidade de energia ideal, mais eficiente para nossos objetivos, foi de 30 Gy”, explica Arthur. “É uma dose relativamente pequena. Para comparar, são necessários cerca de 5 mil Gy para matar uma borboleta.”
Arthur faz questão de deixar claro que insetos, frutas ou outros produtos irradiados não apresentam nenhum risco de contaminação para a saúde das pessoas ou para o ambiente. “Muitos confundem material irradiado com contaminado ou radiativo”, diz. “Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O material irradiado apenas recebe energia, que interage com a matéria e depois se dissipa. Ele não fica contaminado com material radiativo das pastilhas de cobalto-60. O mesmo acontece com uma pessoa que se submete a um exame de raios X. Ela recebe a radiação, mas não fica contaminada.”
© LEO RAMOS
Na Bioagri, gaiolas com telas de tecido são utilizadas como criatório para os mosquitos
Os mosquitos transgênicos usados no projeto de Juazeiro também não oferecem risco ao ambiente nem à população da cidade. É o que garantem os pesquisadores envolvidos no trabalho e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que, em dezembro de 2010, aprovou o experimento. Desenvolvidas numa parceria entre o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, a organização social Biofábrica Moscamed e a empresa Oxford Insect Tecnologies (Oxitec), da Inglaterra, as pesquisas estão mais adiantadas que as de Piracicaba. Lá os Aedes aegypti modificados geneticamente já foram soltos no ambiente.
Crescem com antibiótico
Segundo o professor aposentado da USP, Aldo Malavasi, fundador e diretor da Moscamed, responsável pela criação dos insetos, de fevereiro de 2011 a julho de 2012 foram liberados cerca de 15 milhões de machos transgênicos da linhagem OX513A, desenvolvida pela Oxitec. “Eles foram soltos nos distritos de Itaberaba e Mandacaru de Juazeiro”, conta. “Três outras áreas acabam de entrar no projeto, para se confirmar a possibilidade de eliminação do Aedes nesses locais.” Até agora os resultados têm sido animadores. “A população de mosquitos foi reduzida de 80% a 90%”, conta a bióloga Margareth Capurro, professora do ICB, coordenadora do projeto. “Isso significa que a quantidade está abaixo do nível necessário para a transmissão do vírus da dengue.”
Para não morrerem no laboratório ainda na fase de pupa, os machos transgênicos desenvolvidos pela Oxitec, que receberam o gene que produz a proteína letal, crescem e se desenvolvem em contato com o antibiótico tetraciclina. Sem esse antídoto, que reprime a síntese da substância mortal, não haveria sobreviventes para serem soltos na natureza. No ambiente em que são liberados, eles copulam com fêmeas selvagens e os descendentes desses acasalamentos herdam a proteína letal. “Como na natureza não tem tetraciclina, esses filhotes morrem ainda na fase de larva ou pupa”, explica Margareth. “Por isso, com o tempo, a população dos mosquitos diminui.”
Os bons resultados iniciais do mosquito transgênico vão levar o projeto a novas etapas. Segundo Malavasi, o próximo passo do trabalho na Bahia é testar os mosquitos transgênicos numa cidade de porte médio. “Foi escolhida, de comum acordo com a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, que financiará o projeto, a cidade de Jacobina na região noroeste do estado, com 80 mil habitantes e alta incidência de dengue”, diz. “Por meio da nossa nova unidade de produção, inaugurada no dia 7 de julho, construída com recursos da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado, conseguiremos produzir 4 milhões de machos por semana, quantidade suficiente para reduzir a população de Aedes na cidade. Será um grande experimento, que ainda aguarda a aprovação da CTNBio.
O projeto de Piracicaba ainda está um pouco distante dessa fase. De acordo com Gava, antes da liberação em massa dos mosquitos irradiados na natureza serão necessários testes de campo. “Precisamos verificar como ocorrerá a dispersão do Aedes estéril no ambiente e qual a competitividade dele com a linhagem selvagem”, completou. Por enquanto, o projeto está sendo desenvolvido pelo Cena e a Bioagri, sem nenhum investimento de outra instituição. “Estima-se que serão necessários 
R$ 500 mil para a viabilizar o do projeto, com a construção de um laboratório para criação em grande escala do Aedes”, calcula Arthur.
Apesar de diferentes, as tecnologias de Piracicaba e Juazeiro podem se complementar e trazer um importante avanço no controle do Aedes e, consequentemente, da dengue. Outra vantagem dessa forma de controle é a redução do uso de produtos químicos, inseticidas e larvicidas, o que traz benefícios ambientais e para a saúde humana. Estudos semelhantes são realizados em todo o mundo. Segundo Arthur, a técnica de esterilizar o Aedes com radiação é inédita no Brasil, mas existem vários trabalhos de outros países publicados em revistas científicas, mostrando a eficiência desse método de controle. Quanto aos transgênicos da Oxitec, eles já foram testados em outros países. Em 2010, por exemplo, 3 milhões de machos geneticamente modificados foram liberados nas Ilhas Cayman, no Caribe. Os resultados foram semelhantes aos de Juazeiro: supressão de 80% da população selvagem na área da soltura. Números parecidos foram obtidos na Malásia, o que estimulou outras nações a se interessar pelas experiências, entre elas Índia, Tailândia, Estados Unidos e Vietnã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário