Pesquisadores querem entender o que faz o cérebro de algumas pessoas resistir aos efeitos do mal de Alzheimer
Os
cérebros de quatro senhoras com idades entre 80 e 82 anos que morreram
recentemente em São Paulo contam um pouco mais sobre a complexidade do
mal de Alzheimer. Amostras desses cérebros, doados ao banco de encéfalos
da Universidade de São Paulo (USP), foram analisadas ao microscópio e
revelaram o amontoado de placas e emaranhados de proteínas que são a
marca típica dos estágios avançados do Alzheimer. Era de esperar,
portanto, que essas mulheres tivessem sofrido na última década de vida
sérios problemas de perda de memória e de cognição, como dificuldade de
se expressar e de perceber o espaço a sua volta. Entrevistas com
familiares e cuidadores das idosas, porém, provaram que elas viveram
lúcidas até o fim.
“Ninguém entende exatamente por que essas pessoas não desenvolveram
demência”, admite o neuroanatomista Carlos Humberto Andrade-Moraes, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu doutorado, feito sob a
supervisão do neurocientista Roberto Lent, da mesma universidade, é o
primeiro no mundo a analisar o número total de células do cérebro de
idosos conhecidos como doentes de Alzheimer assintomáticos. O estudo,
publicado com outros pesquisadores da UFRJ e da USP em dezembro na Brain,
concluiu que o número de neurônios dos assintomáticos é praticamente
igual ao de idosos saudáveis, diferentemente do que se vê no cérebro de
pessoas com Alzheimer que desenvolvem demência, a perda de memória e da
capacidade cognitiva. Na demência há uma redução drástica de neurônios
no hipocampo e no córtex, as regiões cerebrais responsáveis pela
consolidação da memória e pelo raciocínio.
Em média, uma em cada 10 pessoas com mais de 65 anos apresenta os
sinais clínicos do Alzheimer. A doença se manifesta primeiro com
pequenos deslizes de memória, que com o tempo ficam mais frequentes,
seguidos de falhas no julgamento moral, na percepção do espaço e do
tempo e do aumento na dificuldade de se comunicar. A sobrevida média é
de oito anos, ao longo dos quais os sintomas se agravam até a
incapacitação total.
Há algum tempo se sabe que a demência é provocada pela destruição das
sinapses, os trilhões de conexões entre os 86 bilhões de neurônios, as
células cerebrais que armazenam e transmitem informações, das quais
emergem as memórias e os pensamentos. Um neurônio saudável recebe até 10
mil sinapses de outros neurônios, trocando sinais elétricos e
substâncias que o mantêm vivo. Impedidos de manter as sinapses no
Alzheimer, os neurônios atrofiam e morrem. Como consequência, o volume
do hipocampo e a espessura do córtex diminuem, o que pode ser visto em
imagens de ressonância magnética. Segundo o neurologista Márcio
Balthazar, que atende pessoas com Alzheimer no Hospital das Clínicas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as neuroimagens podem
ajudar no diagnóstico da doença, mas ainda não substituem os testes
laboratoriais, clínicos e psicológicos.
Em parceria com o neurologista Fernando Cendes, da Unicamp, Balthazar
e seus colaboradores vêm apostando no aperfeiçoamento de uma nova forma
de identificar o Alzheimer precocemente: o uso de neuroimagens para
avaliar a atividade cerebral, e não apenas a anatomia. A ideia é
observar em imagens de ressonância magnética funcional a atividade do
cérebro quando os pacientes estão relaxados, sem pensar em nada. “Mesmo
com a pessoa em repouso, vemos que algumas áreas do cérebro são ativadas
simultaneamente, pulsando em uma mesma frequência, o que sugere que
sejam grupos de neurônios se comunicando”, explica Balthazar. “Uma
pessoa com Alzheimer tem essa rede menos conectada.”
Em artigo publicado em novembro na Psychiatric Research: Neuroimaging,
o grupo da Unicamp conseguiu distinguir com cerca de 70% de acerto as
neuroimagens da atividade cerebral em repouso de pessoas com sintomas
moderados de demência daquelas de idosos saudáveis. Os pesquisadores
observaram ainda uma relação entre as falhas de conexão da rede e o grau
de perda de memória.
Quanto mais cedo melhor
“Esperamos aperfeiçoar o método para realizar o diagnóstico cada vez mais precocemente”, conta Balthazar. Apesar de o Alzheimer permanecer sem cura, quanto antes o diagnóstico for feito mais eficazes são as intervenções que aliviam os sintomas: o uso de inibidores de acetilcolinesterase e a realização de terapia ocupacional, reabilitação psicológica e atividade física, além do planejamento da família para o futuro.
“Esperamos aperfeiçoar o método para realizar o diagnóstico cada vez mais precocemente”, conta Balthazar. Apesar de o Alzheimer permanecer sem cura, quanto antes o diagnóstico for feito mais eficazes são as intervenções que aliviam os sintomas: o uso de inibidores de acetilcolinesterase e a realização de terapia ocupacional, reabilitação psicológica e atividade física, além do planejamento da família para o futuro.
Como a demência senil pode ter outras causas – problemas vasculares e
outras doenças degenerativas –, o diagnóstico do Alzheimer em geral só é
confirmado após a morte. A autópsia do tecido cerebral revela um
excesso das chamadas placas neuríticas, ancoradas em ramificações dos
neurônios, e dos emaranhados neurofibrilares, no interior dos neurônios
atrofiados. Esses sinais são encontrados especialmente no hipocampo e no
córtex cerebral. Até alguns anos atrás, a maioria dos pesquisadores
acreditava que as placas neuríticas eram as responsáveis pelas
disfunções sinápticas. Mas estudos recentes feitos pela equipe da
neurocientista Fernanda De Felice e do bioquímico Sergio Teixeira
Ferreira, ambos da UFRJ, vêm demonstrando que as placas, apesar de
tóxicas, não são a causa principal da eliminação das sinapses e da morte
dos neurônios (ver Pesquisa FAPESP n. 157).
De fato, as placas são formadas pelo acúmulo de pequenas moléculas de
beta-amiloide. Normalmente produzida pelo cérebro, essa proteína sofre
deformações no Alzheimer. Muitos pesquisadores, porém, hoje acreditam
que são amontoados bem menores de beta-amiloide – os oligômeros, capazes
de se difundir para dentro e para fora dos neurônios – os responsáveis
por interferir nas sinapses. Outras pesquisas sugerem que esses
oligômeros também formam os emaranhados neurofibrilares, que impedem o
transporte de substâncias dentro dos neurônios e contribuem para a sua
morte. Segundo esse raciocínio, a formação das placas seria uma
tentativa do organismo de varrer os oligômeros para fora das células e
para longe das sinapses. “As placas seriam protetoras e não causadoras
da demência”, diz Andrade-Moraes.
A descoberta dos doentes de Alzheimer assintomáticos reforçou essa
hipótese. As primeiras descrições desses casos surgiram em estudos que
acompanharam centenas de idosos nos Estados Unidos. A comparação dos
exames clínicos a que essas pessoas eram submetidas periodicamente com a
análise de seus cérebros após a morte revelou que de 25% a 40% dos
casos diagnosticados histologicamente como sendo Alzheimer não haviam
desenvolvido demência. “Embora permaneça duvidoso se esses indivíduos
continuariam clinicamente normais se tivessem vivido mais tempo, eles
parecem ter sido capazes de compensar ou atrasar o aparecimento dos
sintomas de demência”, escreveu em 2012 o neuropatologista Juan
Troncoso, da Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos, um dos
primeiros a chamar a atenção para os pacientes assintomáticos.
Segundo Andrade-Moraes, antes do estudo publicado na Brain
nenhum trabalho sobre o impacto do Alzheimer no número de células do
cérebro havia comparado indivíduos com e sem demência. “Queríamos saber
se os assintomáticos teriam alguma alteração na composição das células
cerebrais”, ele diz.
A pesquisa foi feita em parceria com a equipe da neuropatologista Lea
Grinberg, coordenadora do Banco de Encéfalos Humanos da USP, que, além
de analisar os cérebros de idosos mortos em São Paulo, investiga, por
meio de questionários com familiares e cuidadores, como era o desempenho
cognitivo dessas pessoas até 10 anos antes de sua morte.
Os pesquisadores da USP e da UFRJ selecionaram 14 cérebros de
mulheres que morreram entre os 71 e os 88 anos (a prevalência do
Alzheimer é um pouco maior entre as mulheres). Cinco tinham um nível de
placas considerado normal para a idade, enquanto as demais apresentavam o
excesso característico do Alzheimer. Dessas últimas, cinco apresentavam
sinais de demência e quatro eram assintomáticas.
Menos neurônios, mais glia
Os cérebros foram processados na UFRJ em uma máquina, o fracionador isotrópico automático, construído pela equipe de Lent (ver Pesquisa FAPESP nº 192). A máquina transforma porções de cérebro em uma suspensão homogênea, contendo o núcleo das células. Anticorpos coloridos que se ligam ao núcleo dos neurônios permitem distingui-los das demais células do cérebro, as células da glia.
Os cérebros foram processados na UFRJ em uma máquina, o fracionador isotrópico automático, construído pela equipe de Lent (ver Pesquisa FAPESP nº 192). A máquina transforma porções de cérebro em uma suspensão homogênea, contendo o núcleo das células. Anticorpos coloridos que se ligam ao núcleo dos neurônios permitem distingui-los das demais células do cérebro, as células da glia.
Como esperado, o hipocampo das mulheres com demência tinha metade do
número de neurônios encontrado no hipocampo das saudáveis e das
assintomáticas – aquelas com demência também tinham menos neurônios no
córtex todo. Ao mesmo tempo, o cérebro das pessoas com demência tinha
uma proporção maior de células da glia. “Essas células aumentam de
número para proteger os neurônios, mas com o progresso da doença
provocam uma inflamação que piora os sintomas de demência”, explica
Andrade-Moraes. Ele, porém, não encontrou diferença significativa -– no
número de neurônios e de células da glia – entre o cérebro de idosos
saudáveis e o de idosos com Alzheimer assintomáticos.
“Os assintomáticos devem possuir algum mecanismo fisiológico
desconhecido que protege suas redes de neurônios dos efeitos dos
oligômeros”, suspeita. “Algo afasta os oligômeros das sinapses,
agregando-os rapidamente em placas.”
Para ele, um candidato a explicar esse mecanismo é a atuação mais
eficiente da insulina no cérebro dos assintomáticos. Diferentemente do
que ocorre em outros órgãos, o papel da insulina no cérebro parece não
ser o controle do metabolismo de açúcar, mas a consolidação da memória e
a formação de novas sinapses. Experimentos in vitro e com
animais feitos por Fernanda De Felice e Sérgio Ferreira vêm demonstrando
que a insulina protege os neurônios da ação dos oligômeros. Em artigo
publicado em dezembro na Cell Metabolism, eles apresentaram novos
mecanismos neuronais que provocam a perda de sinapses em camundongos e
macacos com sinais semelhantes aos de Alzheimer. Parte do doutorado de
Mychael Lourenço, esse trabalho mostrou ainda que um remédio usado para
tratar diabetes tipo 2, a liraglutida, bloqueou os danos neuronais em
modelos animais de Alzheimer. Atualmente uma equipe do Imperial College
de Londres testa a liraglutida em 200 pessoas com Alzheimer.
Outra hipótese é que os assintomáticos possuem uma maior reserva
cognitiva, talvez resultado de uma rede de sinapses mais complexa do que
a dos que desenvolvem demência. Essa reserva permitiria resistir mais
aos efeitos dos oligômeros. Essa ideia vem da observação de que os
assintomáticos costumam ser pessoas com um nível de escolaridade maior
ou que aprenderam a falar e a escrever cedo na infância. Na Unicamp,
Balthazar tenta confirmar o efeito protetor da reserva cognitiva
comparando a conectividade das redes neuronais em pacientes idosos com
diferentes graus de escolaridade, hábitos de leitura e vida social. n
Projetos
Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia – Brainn (n° 2013/07559-3); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coord. Fernando Cendes – FCM/Unicamp; Investimento R$ 13.621.302,32 (FAPESP).
Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia – Brainn (n° 2013/07559-3); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coord. Fernando Cendes – FCM/Unicamp; Investimento R$ 13.621.302,32 (FAPESP).
Artigos científicos
ANDRADE-MORAES, C.H. et al. Cell number changes in Alzheimer’s disease relate to dementia, not to plaques and tangles. Brain. dez. 2013.
LOURENCO, M.V. et al. TNF- Mediates PKR-dependent memory impairment and brain IRS-1 inhibition induced by Alzheimer’s ß-amyloid oligomers in mice and monkeys. Cell Metabolism. 3 dez. 2013.
BALTHAZAR, M.L. et al. Whole cortical and default mode network mean functional connectivity as potential biomarkers for mild Alzheimer’s disease. Psychiatry Research. 11 nov. 2013.
ANDRADE-MORAES, C.H. et al. Cell number changes in Alzheimer’s disease relate to dementia, not to plaques and tangles. Brain. dez. 2013.
LOURENCO, M.V. et al. TNF- Mediates PKR-dependent memory impairment and brain IRS-1 inhibition induced by Alzheimer’s ß-amyloid oligomers in mice and monkeys. Cell Metabolism. 3 dez. 2013.
BALTHAZAR, M.L. et al. Whole cortical and default mode network mean functional connectivity as potential biomarkers for mild Alzheimer’s disease. Psychiatry Research. 11 nov. 2013.
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