Estranha no ninho
Rainha forasteira invade colmeia órfã e assume o comando das operárias
As abelhas da espécie Melipona scutellaris, comuns na região
Nordeste do Brasil, são conhecidas por não ferroarem (têm um ferrão
atrofiado), por produzirem mel em abundância e por gerarem muitas
rainhas numa mesma colônia. Apenas uma, no entanto, é escolhida para
comandar a colmeia. Às outras, quando não são mortas pelas operárias,
resta respeitar a linha sucessória e aguardar pacientemente a morte da
soberana original. Ou, se derem sorte, abandonar a casa de origem e
formar novas colônias com parte das operárias-irmãs. Até pouco tempo
atrás essas eram as únicas formas conhecidas pelas quais as abelhas
aspirantes ao papel de rainha – os biólogos as chamam de rainhas virgens
– podiam ascender ao poder. Agora se sabe que esse repertório é maior.
Estudos realizados pela bióloga Denise de Araujo Alves e seus colaboradores revelam que as abelhas Melipona scutellaris,
mais conhecidas como uruçu-nordestina, podem adotar um terceiro e mais
arriscado caminho para chegar ao topo da hierarquia social. Em muitas
situações, as rainhas virgens escapam de serem mortas pelas operárias e
abandonam seus próprios ninhos. Durante a fuga, elas conseguem
identificar e invadir colmeias que se tornaram órfãs com a morte da
soberana original, mãe das demais abelhas da colônia. Com essa
estratégia furtiva, abelhas sem um reino próprio agem como parasitas
sociais: conseguem se impor às operárias que não são suas parentes e se
beneficiam do trabalho delas. “É a luta pela sobrevivência”, conta
Denise, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão
Preto.
Os trabalhos de Denise indicam ainda que as invasões têm hora
marcada. Acontecem ao cair da tarde, quando é quase noite e as operárias
que fazem a guarda dos ninhos estão menos alertas. “Parece ser uma ação
calculada”, completa a bióloga.
A hipótese da ocupação de colônias por rainhas invasoras foi sugerida
pela primeira vez em 2003 pelo pesquisador holandês Marinus Sommeijer.
Trabalhando com abelhas Melipona favosa na Costa Rica e em
Trinidad e Tobago, Sommeijer e sua equipe notaram que algumas colônias
pareciam ter sido invadidas por forasteiras. Mas suas observações não
permitiam confirmar a suspeita. Em 2008, durante seu doutorado, Denise e
seus colaboradores decidiram retomar o problema e acompanharam duas
populações de Melipona scutellaris – uma mantida no Laboratório
de Abelhas do Instituto de Biociências da USP, em São Paulo, e outra na
fazenda Aretuzina, em São Simão, no interior do estado, de propriedade
de Paulo Nogueira-Neto, um dos pioneiros nas pesquisas com abelhas sem
ferrão. Nessas duas populações, a pesquisadora coletou pupas de
operárias de 23 ninhos em dois momentos: antes e depois da substituição
das rainhas-mãe. Ao comparar as características genéticas da prole de
cada colônia, os pesquisadores esperavam descobrir se a rainha morta
havia sido substituída por outra rainha da própria colônia ou por uma
invasora.
Na Universidade de Leuven, na Bélgica, em parceria com o biólogo Tom
Wenseleers, Denise analisou o parentesco das pupas com uso de marcadores
genéticos e verificou que os 23 ninhos haviam passado por 24 trocas de
rainhas. Em seis casos (25% do total), o comando da colmeia havia sido
conquistado por uma rainha invasora – essas abelhas são chamadas de
parasitas sociais porque seus descendentes recebem os cuidados de
operárias com as quais não têm parentesco genético.
“A invasão permite agora entender por que em algumas espécies é comum
encontrar tantas rainhas num mesmo ninho”, explica a bióloga Vera Lúcia
Imperatriz Fonseca, uma das mais respeitadas estudiosas de abelhas no
país e orientadora de Denise no doutorado. Segundo Denise, a presença de
várias rainhas numa mesma colônia era entendida como uma espécie de
reserva para a eventual morte da soberana original ou para a fundação de
um ninho-filho. “Mostramos que, caso escapem de serem mortas em suas
colônias natais, algumas rainhas saem delas, acasalam com machos nas
proximidades do ninho e penetram, já fecundadas, em colônias órfãs da
população”, diz a bióloga. Uma vez instaladas nas novas colônias, essas
rainhas iniciam a postura de ovos e se aproveitam do trabalho de
operárias não aparentadas para manter sua prole.
Ao anoitecer
Depois de comprovar a existência de rainhas invasoras, Denise começou a investigar a razão do sucesso das forasteiras. Em outro trabalho feito em parceria com o grupo de Leuven, os pesquisadores brasileiros acompanharam por dois meses o cotidiano de oito colônias de Melipona scutellaris no Laboratório de Comportamento e Ecologia de Insetos Sociais da USP em Ribeirão Preto, coordenado por Fábio Nascimento. Entre fevereiro e março de 2012, a equipe identificou 520 rainhas virgens e marcou cada uma com um minúsculo chip no tórax. Um leitor instalado na entrada de cada colônia registrava a passagem dessas abelhas – tanto as do próprio ninho quanto as invasoras.
Depois de comprovar a existência de rainhas invasoras, Denise começou a investigar a razão do sucesso das forasteiras. Em outro trabalho feito em parceria com o grupo de Leuven, os pesquisadores brasileiros acompanharam por dois meses o cotidiano de oito colônias de Melipona scutellaris no Laboratório de Comportamento e Ecologia de Insetos Sociais da USP em Ribeirão Preto, coordenado por Fábio Nascimento. Entre fevereiro e março de 2012, a equipe identificou 520 rainhas virgens e marcou cada uma com um minúsculo chip no tórax. Um leitor instalado na entrada de cada colônia registrava a passagem dessas abelhas – tanto as do próprio ninho quanto as invasoras.
Nos 40 dias em que acompanharam a movimentação das rainhas, os
pesquisadores identificaram o trânsito de oito rainhas, das quais três
eram parasitas sociais. De acordo com os dados, apresentados na edição
de setembro da Animal Behaviour, as invasões aconteceram sempre
ao cair da tarde ou no começo da noite, entre as 17 e as 20 horas.
“Durante o dia há uma movimentação intensa de entrada de pólen e néctar
na colmeia e muitas operárias ficam alertas, tomando conta das entradas
das colônias para evitar furtos dos seus estoques de alimento”, conta
Denise. “É difícil furar esse bloqueio.” Já no final da tarde, quando a
busca por comida diminui e a luminosidade é mais baixa, essa vigilância
fica reduzida e as rainhas parasitas aproveitam esses descuidos. Denise
suspeita que as rainhas invasoras identifiquem as colônias órfãs
guiando-se por pistas químicas. “Nossos dados mostraram que as rainhas
entram nos ninhos no fim da tarde e que só invadem os ninhos órfãos”,
conta.
Além das implicações evolutivas desse fenômeno, as invasões de
colmeias pode influenciar o trabalho dos criadores de abelhas, que
normalmente selecionam e dividem os ninhos levando em conta a capacidade
de produção de mel de uma colônia. “Com o parasitismo, outra linhagem
genética toma conta da colônia e a eficiência de produção pode mudar com
o nascimento de operárias filhas da rainha invasora”, alerta Denise. Do
ponto de vista ecológico, a ocupação do ninho alheio representa um
mecanismo eficiente de dispersar seus genes. “Dessa maneira, a
variabilidade genética de uma população pode ser alterada porque o
parasitismo social pode aumentar o fluxo gênico entre populações.”
Para Vera Fonseca, o que Denise observou nas colmeias de Melipona scutellaris pode ser um fenômeno mais geral, que ocorre com outras espécies do gênero Melipona e com abelhas com ferrão. “Com as mudanças climáticas, as Melipona scutellaris
provavelmente irão buscar ambientes a que se adaptem melhor”, diz Vera,
que é professora na USP em São Paulo. “Caso seja necessário fazer o
deslocamento assistido dessa espécie, é relevante conhecer como essas
abelhas estruturam geneticamente a sua população.”
Como próximo passo, Denise planeja usar os chips e os
detectores para estudar a dinâmica de espécies que produzem poucas
rainhas. “Queremos verificar se esse comportamento invasivo também
ocorre em outras espécies que não pertençam ao gênero Melipona”, diz.
Projetos
1. Parasitismo social intraespecífico como estratégia reprodutiva em abelhas sem ferrão (Apidae, Meliponini) (2010/19717-4); Modalidade bolsa de pós-doutorado; Coord. Denise de Araujo Alves/USP-RP; Investimento R$ 237.463,20 (FAPESP).
2. Mediação comportamental, sinalização química e aspectos fisiológicos reguladores da organização social em himenópteros (2010/10027-5); Modalidade Jovem Pesquisador; Coord. Fábio Santos do Nascimento/USP-RP; Investimento R$ 260.000,00 (FAPESP).
1. Parasitismo social intraespecífico como estratégia reprodutiva em abelhas sem ferrão (Apidae, Meliponini) (2010/19717-4); Modalidade bolsa de pós-doutorado; Coord. Denise de Araujo Alves/USP-RP; Investimento R$ 237.463,20 (FAPESP).
2. Mediação comportamental, sinalização química e aspectos fisiológicos reguladores da organização social em himenópteros (2010/10027-5); Modalidade Jovem Pesquisador; Coord. Fábio Santos do Nascimento/USP-RP; Investimento R$ 260.000,00 (FAPESP).
Artigos científicos
VAN OYSTAEYEN, A. et al. Sneaky queens in Melipona bees selectively detect and infiltrate queenless colonies. Animal Behaviour. v. 86, n.3, p. 603-9. Set. 2013.
WENSELEERS, T. et al. Intraspecific queen parasitism in a highly eusocial bee. Biology Letters. v. 7, p. 173-6. 2010.
VAN OYSTAEYEN, A. et al. Sneaky queens in Melipona bees selectively detect and infiltrate queenless colonies. Animal Behaviour. v. 86, n.3, p. 603-9. Set. 2013.
WENSELEERS, T. et al. Intraspecific queen parasitism in a highly eusocial bee. Biology Letters. v. 7, p. 173-6. 2010.
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