Número de cromossomos varia em linhagens de células-tronco
Perda e ganho de material genético desafiam o uso dessas células em terapia.
Em um artigo publicado este mês na revista Frontiers in Cellular Neuroscience,
o neurocientista Stevens Rehen e sua equipe no Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) chamam a
atenção para um fenômeno que atinge com frequência as células-tronco e
que deve exigir cautela no uso dessas células tanto em pesquisas como em
potenciais terapias. Esse fenômeno é a aneuploidia: a perda ou o ganho
de cromossomos, os filamentos espiralados de DNA que abrigam os genes.
Rehen, a biomédica Rafaela Sartore e a bióloga Sylvie Devalle
analisaram cerca de 160 estudos publicados nos últimos anos e observaram
que a variação no número de cromossomos atinge diferentes linhagens de
células-tronco cultivadas nos laboratórios ao redor do mundo. “Embora
também ocorra em organismos vivos e saudáveis, a aneuploidia observada
nas células em cultura não enfrenta a pressão seletiva de mecanismos que
as eliminem”, comenta Rehen, coordenador do Laboratório Nacional de
Células-tronco Embrionárias (LaNCE)
da UFRJ, onde esse tipo de célula é usado para tentar construir modelos
experimentais do que ocorre em doenças neuropsiquiátricas.
“Precisamos identificar o grau de aneuploidia tolerável, com o qual o
organismo consiga lidar sem que surjam efeitos nocivos”, conta Rafaela,
uma das pesquisadoras do LaNCE.
De modo geral, a aneuploidia é vista como indesejável porque pode
levar ao desenvolvimento de doenças neurológicas e psiquiátricas e até
mesmo à morte do feto. Observada em taxas elevadas nas culturas de
células-tronco, ela pode tornar inviável o uso dessas células em
potenciais terapias. Versáteis e capazes de originar diferentes tecidos
do corpo, as células-tronco – em especial as embrionárias, extraídas de
embriões nos primeiros dias de vida – são a esperança de novos
tratamentos para doenças hoje incuráveis ou para as quais ainda não
existe terapia satisfatória. Para que seu uso seja seguro, porém,
acredita-se que é necessário que mantenham a quantidade original de
material genético (nos seres humanos as células, com exceção dos óvulos e
dos espermatozoides, têm 23 pares de cromossomos).
Essa estabilidade cromossômica, entretanto, é menos frequente do que
se imaginava. “Desde que começamos a monitorar as células-tronco em
cultura em nosso laboratório, verificamos que de 20% a 30% delas
apresentam naturalmente alguma forma de aneuploidia”, conta Rafaela.
Depois que Rehen identificou a aneuploidia no cérebro de roedores e
humanos saudáveis, respectivamente em 2001 e em 2005, ela já foi
observada em outros tecidos do corpo. Aparentemente é uma falha na
divisão celular comum em órgãos que passam por fases aceleradas de
desenvolvimento, como o cérebro – seja o dos roedores, seja o humano.
Estudando o desenvolvimento neuronal durante um estágio na Universidade
da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, Rehen observou que um
terço das células do cérebro em formação tinha quantidade de DNA
diferente da esperada. Também verificou que o organismo, à medida que
amadurece, se encarrega de eliminar as células aneuploides, cujo índice
que diminuía para cerca de 10% no cérebro adulto. Em estudo publicado em
2011, Rehen e Rafaela comprovaram que a aneuploidia surge durante a
fase de especialização (diferenciação), em que as células-tronco
progenitoras das células cerebrais se dividem para originar neurônios e
células da glia.
Segundo Rehen, nas células-tronco embrionárias em cultura a forma
mais comum de aneuploidia é o ganho de uma cópia extra dos cromossomos
12, 17 ou 20, em geral observado em células tumorais. Já nos tecidos
saudáveis o que ocorre com mais frequência é a perda de cromossomos
inteiros ou de parte deles. “Acreditamos que a exposição a ambientes
estressantes, associada à predisposição genética, aumente a taxa de
aneuploidia em doenças cerebrais”, comenta Rehen. Por essa razão, o
potencial uso de células-tronco para transplantes no futuro exigirá a
investigação da ocorrência de formas específicas de aneuploidia
associadas a doenças neurológicas e psiquiátricas e a tumores. Em
algumas formas de ataxia, doença neurodegenerativa que provoca a perda
do controle muscular, parece haver um aumento generalizado do material
genético das células cerebrais, enquanto no Alzheimer e na esquizofrenia
esse aumento atinge cromossomos específicos, de acordo com o artigo na Frontiers in Cellular Neuroscience.
“É preciso ficar alerta para esse fenômeno quando se pensam no
desenvolvimento de tratamentos e na elaboração de modelos experimentais
baseados células-tronco”, afirma Rehen. “Queremos descobrir, por
exemplo, se as células-tronco obtidas pela reprogramação de células
retiradas da pele de pessoas com esquizofrenia originariam neurônios com
as mesmas formas de aneuploidia encontradas nos cérebros dessas
pessoas”, conta Rafaela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário